KUARUP – 40 eternos anos: Ou de estrelas, sóis e luas

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Kuarup – 40 eternos anos: Ou de estrelas, sóis e luas

Há 40 anos, estreava no Theatro Municipal de São Paulo o espetáculo de dança “KUARUP ou A Questão do Índio”. Com coreografia de Décio Otero e direção teatral de Marika Gidali, neste espetáculo, o Ballet Stagium, com sua linguagem inovadora e sua responsabilidade social, lançava luz sobre a eminente extinção da rica cultura indígena, ao mesmo tempo encantando com a proposta estética surpreendente que trazia ao palco.

Comemorando o aniversário de lançamento deste espetáculo, que foi um divisor de águas na história da dança em particular e das artes em geral, Kuarup retornou neste ano ao Theatro Municipal por dois dias (9 e 10 de outubro), após ter-se apresentado em diferentes partes do mundo por 400 vezes.

Generosamente convidada por Marika Gidali a participar desta festa, assisti à revivescência de Kuarup em nosso presente. E saí do espetáculo absolutamente encantada. Num momento em que nossas artes persistentemente esbarram em temas repetitivos e chavões, parecendo, também, insistir no que choca e ofende ou é de mau gosto, o Stagium nos devolve a uma dimensão onde a Beleza ainda vige. E onde nossa brasilidade, ameaçada pela lama, a corrupção, ao julgamento e a cisão maniqueísta, ressurge com vigor e luminosidade, trazendo de volta a esperança e a luz. Abaixo, segue a crítica que apresentei a Marika e ao Stagium, um dia após ter tido o privilégio de assistir a essa maravilha. Aí vai ela:

O Stagium coreografa, grafa, dá corpo, voz, luz, cor, teatralidade, musicalidade, gestualidade viva à saga do índio desde antes da descoberta desta Terra Brasilis até sua eminente (ou presente e corrente) extinção. Em verde e amarelo, os corpos, expressiva, plasticamente, colorem o palco nu, ritualizando num plano estético a vitalidade das culturas nativas, seus mitos e ritos cotidianos de luta, acasalamento, criação, caça, navegação, plantio, colheita – os atos de gestar, parir, acalentar; o sobreviver, o morrer. O Kuarup – celebração de morte – nesta dança-teatro-total, integrativa de tantas artes e formas, pela maestria de Marika Gidali e Décio Otero com seu Ballet Stagium de hoje e o de sempre ao longo de 40 anos, se faz um acolhimento à vida. Eterniza as práticas, os valores, as artes, a cultura indígena que vive no coração verde-amarelo (flagrado pelo figurino de Clodovil) de nossa gente e de nossa terra.

Os pés, os corpos, plantados firme e sutilmente sobre a terra. A dança que pulsa com o ventre da Terra: O Kuarup do Stagium não é ritual de morte. É celebração da vida. Eternização do coração indígena de nossa carne brasileira, carne miscigenada, carne que hoje é muitas carnes. Sangue novo e sangue velho convivendo numa dimensão trans-temporal, que recusa a corrosão histórica, a decadência, o Apocalipse.

(Re)vestidos de penas e plumas, cestas, armas e adereços, devolvidos à sua nudez primeva, trajam uma morte que é apoteose. Céu vermelho, azul. Sol morrendo; nascendo para sempre.

Os sons dos “chants” indígenas (flagrados pelos irmãos Villas Boas) desembocam num Réquiem composto de acordo com a estética dos brancos. Somos UM. Um só povo. Sem cor de pele ou raça. Verde-amarelo. Terra Brasilis. Recusa à morte, Kuarup é rito coreográfico que eterniza nossa alma brasileira.

O encontro emocionante entre gerações de dançarinos (que recriaram a saga indígena) no mesmo palco ao final, a apoteose verde-amarela encarnada no casal Décio e Marika no palco-altar da Arte-como-Beleza (e como consciência social / humana) merece a chuva de rosas vermelhas que recebe sob aplausos e gritos. E merece muito mais. Merece nosso tributo e agradecimento por nos devolverem a dignidade de sermos brasileiros, mesmo num momento que nos parece bordejar o abismo e a volta à Idade das Trevas.

Décio, Marika, Ballet Stagium de ontem, hoje e sempre. Obrigada por toda esta Beleza e Grandeza. Por sua atitude como poetas da responsabilidade, do Ideal, da coragem, da recusa à massificação obtusa e imbecilizante. Não há melhor protesto e recusa à treva do que a própria luz. E vocês têm Luz própria. Brilhem sempre. Ci: a Estrela. Araci: o Sol. Stagium: Sol e Lua. Décio e Marika.

 

 

SILVIA SIMONE ANSPACH
PhD em Comunicação, (Brasil e EUA), Mestre em Linguística Aplicada (Inglaterra), Especialista em Psicologia Analítica, Psicanalista, Bacharel em Letras (Br.). Foi Fulbright Scholar na UNC – EUA. Seus livros: Entre Babel e o Éden; Arte, cura, loucura; Melosofia; A psique e a religião; Patches and Sketches; Veneno (coautoria), diversos textos em periódicos e livros no Brasil e no exterior. Vários prêmios e distinções.

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