Cópia Fiel

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Cópia Fiel – Por Luiz Carlos Andrade Santos

Há alguns meses produzi dentro de mim a “proto-teoria” de que os filmes, assim como as crianças, no seu desenvolvimento, em algum instante põem-se de pé e caminham com esforço próprio, quase como se ganhassem vida autônoma, independente da produção, direção e toda a parafernália que caracteriza o cinematógrafo e a indústria que se criou a partir do experimento com as imagens em movimento projetadas na tela. Não se trata aqui da defesa do cinema clássico, no qual a idéia de autor e a montagem se pretendem como que invisíveis ao olhar do espectador. Refiro-me antes à obra de arte em seu mais perfeito acabamento. Iniciada a projeção no retângulo branco, quanto antes os filmes conseguem fazê-lo (por-se de pé), tanto mais nos capturam para uma real experiência estética. Não que aqueles filmes que se põem de pé lá pelos seus dois quartos de duração não possam também realizar esta mesma captura sensorial. Mas é inegável que quando isto acontece de pronto, temos a magia do cinema em todo seu esplendor. Lembrei de minha quase que infantil elocubração acima ao assistir, em segunda vez, ao filme “Cópia Fiel”, de Abbas Kiarostami. Eis o tipo de obra que do primeiro ao último plano não nos permite “defesa”. É irresistível sem recorrer a trucagens. “Dialoga” com o espectador em regiões tão sutis de compreensão que mesmo onde parece que fomos desorientados, até mesmo ali não há dispersão, desinteresse ou cansaço decorrentes de algum nosso empenho de ordem meramente intelectual ou racional.

Outro dia, caminhando no calçadão do centro velho da cidade, observei a garçonete e seu semblante ao ler mensagem de texto em seu aparelho de fone celular. Evidente que não sei o que ali seguia escrito. O que sei é que por um fugidio instante, aquela garçonete subtraiu-se encantatóriamente do cotidiano e seu rosto autenticava que eu era, naquele momento, testemunha de que alguém fora restituído ao fluxo da vida. Digo isto não pelo sereno contentamento que ela exibia com seu corpo. Minha impressão seria a mesma se ela externasse tristeza ou desespero.

Cito este episódio de caráter pessoal para falar de outra sorte de intervenção, agora como corte, interrupção, desvio ou ruído que interfere de outro jeito no fluxo da vida. Na primeira cena do filme, temos a situação em que um escritor está atrasado para a palestra que proferirá por ocasião do lançamento do seu livro. Ao chegar no auditório, é aplaudido e abordado por aqueles que desejam um seu autógrafo, antes mesmo do início da palestra. Quando seu discurso principia, assistimos à inusitada e constrangedora circunstância em que ele, o palestrante, atende ao chamado não urgente do seu fone celular, na presença de todos que supostamente estão ali para ouvi-lo discorrer sobre as idéias contidas em seu livro. Assistimos ainda à ouvinte que tinha lugar reservado na primeira fila, comportar-se, durante o pouco tempo em que esteve presente, como se ali não estivesse, vez que neste lapso de tempo limitou-se a trocar olhares com o filho que, à distância, enquanto manuseava sua minúscula engenhoca de vídeo games, solicitava insistentemente a presença de sua mãe para poder desfrutar seu sanduíche acompanhado de coca-cola e batatas fritas na lanchonete próxima ao local da palestra. assistimos, também, ao truncado diálogo de mãe e filho na lanchonete, em que ela é sistematicamente provocada por ele, sem que em nenhum momento da sequência ele abandone a interação com seu aparelho eletrônico.

Em cerca de aproximadamente dez minutos de projeção, o filme está, digamos assim, em pé e pronto para caminhar sozinho. O escritor quer falar da sua obra mas paradoxalmente não está ali. Alguns espectadores se deslocaram para ouvi-lo, mas no fundo querem mesmo gozar da concessão de um autógrafo, talvez para exibi-lo posteriormente como uma conquista. A convidada ilustre não pode minimamente se concentrar na fala do escritor porque seu filho, que também não está ali, solicita impertinentemente sua presença.

Observamos que na segunda parte do filme, o fone celular também será protagonista de interrupções relevantes. Kiarostami, contudo, toma tais interrupções como hiatos invisíveis que só reforçam a impressão de ritmo e continuidade do filme. É como se não vivenciássemos a experiência do corte. Algo segue se desenhando mesmo quando os diálogos são inesperadamente interrompidos, num jogo em que já não sabemos mais se o fio da meada está no que se diz na superfície ou no que se trama e silencia naquilo que não se diz. Esta ambiguidade, entretanto, fortalece a espinha dorsal do filme e não nos deixa carentes de direção ou sentido.

O exemplo da cena no café, em que o personagem James Miller (o escritor), vivido por William Shimell, se retira para atender seu fone celular, deixando a personagem Elle (a ilustre convidada da primeira fileira), vivida por Juliette Binoche, disponível para uma conversa entre mulheres com a atendente que serve o café, é emblemático deste procedimento adotado por Kiarostami. Não importa que nos vejamos diante do impasse de sabermos se é plausível que assumamos como verossímel que doravante e até o final do filme eles formam um casal que “convive” há quinze anos. Importa isto sim, que a mão invisível do autor genial nos faz acreditar no que até ali parecia improvável, sendo que para que isto acontecesse, nós, espectadores, não tivemos que mobilizar mais do que uma reserva mínima de esforço.

Ainda nesta mesma cena, no diálogo entre Elle e a senhora atendente, temos a chave para a compreensão do sentido da trama. James não fala francês, idioma de Elle. Tampouco fala italiano, idioma da atendente. Elle fala e entende francês, a língua de sua pátria, além do inglês e do italiano, língua do lugar onde vive há cinco anos. A atendente estranha singelamente que James, aparentemente um bom marido, não consiga se comunicar em outra língua que não o inglês. Quase que inconscientemente nos adverte que James delibera se comunicar apenas em inglês porque pretende se comunicar apenas consigo mesmo.

Desde Platão e Aristóteles, a “mimese” (imitação, cópia, representação) é assumida como problemática filosófica. Imitar as coisas é o processo no qual temos estas coisas apresentadas (seria melhor dizê-lo representadas) como aquilo que não são essencialmente em si mesmas. Há um abismo intransponível entre o objeto e a imagem que mimetiza o objeto, por mais fidedigna que seja a imagem. O que dizer então dos arquétipos que funcionam como “modelos” para comportamentos que, grosso modo, nada mais são do que “cópias insuficientes” na tentativa de comunicação entre os seres humanos? James e Elle se enredam no jogo anima/animus de modo tão elementar e óbvio que em certos momentos temos a impressão de que nada mais são do que o espelho no qual James reflete o masculino de Elle e esta, por sua vez, exprime, por espelhamento, o feminino de James. O espelho, aliás, é um objeto caro a Kiarostami.

Na cena que se desenrola na praça, onde há uma escultura de um homem amparando/escorando/protegendo uma mulher, assistimos à admiração de Elle pela escultura, primeiro através de um espelho no canto da praça. Posteriormente seguimos acompanhando-a pelo espelho da motocicleta que também está ali. A motocicleta, por um átimo de segundo, chama a atenção de James, que permanece indiferente à escultura e seus efeitos sobre Elle, que está fora do campo e no entanto permanece no campo.

Enfim, através de cenas aparentemente banais e destituídas de sentido ou significado, há um jogo corrente nas falas e silêncios do casal que não sabemos, ao certo, se se trata mesmo de um casal, ou se Kiarostami, através de roteiro tão singelo, quer nos chamar atenção, mais uma vez, para o caráter ambíguo da imagem trabalhada pela sétima arte.

Uma verdadeira obra-prima do cinema contemporâneo.


Luiz Carlos Andrade Santos
, amigo, filósofo, cinéfilo e escritor de talento sublime e que nos deixou em Agosto de 2017. Certamente não concordaria com os adjetivos colocados acima pois era por demais humilde e nunca quis ser enquadrado nos títulos. Porém como nada ele pode fazer no momento para impedir que eu o descreva, segue estes e muitos outros adjetivos que ele merecia. Ler seus textos é uma forma de matar a saudades e honrar sua memória. E assim continuar vibrando com sua inspiração e presença em nossas vidas. Que falta você nos faz meu querido Luiz!

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